segunda-feira, 30 de maio de 2016

O VLAD QUE EU CONHECI - A QUASE MORTE (parte três)


As novas gerações nunca saberão como eram tensos os dias que antecediam a divulgação do resultado do vestibular. Naquela época, passar na Federal era o que importava, não existiam tantas universidades como hoje existem. Passar no vestibular era um acontecimento importante, e o dia que o resultado ia sair, ninguém saía de casa, ninguém desgrudava do rádio, os locutores oficiais iriam ler em ordem alfabética os nomes dos futuros universitários, e começando pela área 1, até a área 5. Claro que depois dos resultados anunciados, o carnaval começava em Salvador, cidade em que morávamos. 

No ano de 1981, eu esperava pelo resultado do meu vestibular. Vlad já havia passado um ano antes, e cursava com sucesso, Economia. Eu havia passado o ano meditando e praticando yoga, confesso que não esperava nada e confiava na Lei do Karma, como uma bicho-grilo perfeita, achava que os caminhos já estavam traçados e os mestres sabiam o que era melhor para mim. Muito engraçado pensar nisso depois de 34 anos, mas era assim mesmo.

Passei no vestibular. Ouvimos meu nome no radio, assim como ouvimos um ano antes, o de Vlad. Os Deuses Brahmam, Vishnu e Shiva devem ter me ajudado. Fui para meu retiro espiritual fazer meditações e entoar mantras de agradecimento. Vlad foi para a Barra, bairro onde as festas e comemorações aconteciam.

Toda Salvador jovem estava lá. Como Vlad conhecia quase a cidade inteira, ele estava comemorando a vitória de centenas de amigos, e provavelmente minha também. Mas a alegria para ele, e para a maioria que estava ali naquele ano, acabou de repente. Dois carros que faziam "pega" (racha), percorreram a avenida em frente a Praia da Barra, de forma violenta, e um deles atropelou Vladimir, que foi atirado pra tão longe que os amigos tiveram dificuldade de encontra-lo.

Muita gente perseguiu o motorista criminoso, foi um momento de extrema tensão em Salvador. Muitos jovens tentavam salvar Vlad, que havia sumido com o impacto e que mais tarde foi achado debaixo de um carro há uns 20 metros de distância de onde havia sido atingido. 

Terror, revolta, consternação, sangue, sangue, muito sangue.....

Muito difícil para todos que ali estavam acreditar que aquilo estivesse acontecendo.

Vladimir foi levado para o Hospital Português, foi internado na UTI com traumatismo craniano, fratura nos braços e pernas, e com o rosto desfigurado.

Nunca imaginei ver meu irmão assim, mas ver meu pai urrando pelos corredores do hospital, foi pior ainda. Os médicos não conseguiam garantir que ele sairia vivo; se saísse vivo, não conseguiam nos dizer quais os prejuízos que ele teria. Falaria outra vez? Andaria? Quais as consequências do traumatismo craniano? Ninguém sabia. Ele acordaria do coma? Lembraria de algo? A medicina daquela época não tinha muitas respostas.

Salvador parou. Todos os jovens que andavam pela Barra, conheciam Vlad. A porta do hospital virou um verdadeiro ponto de encontro. As pessoas iam pra lá, e lá ficavam. Luto na cidade. Era muito triste tudo aquilo .....

..... mas assim como na morte, o tempo leva o glamour de tudo.....o choque e o horror dos amigos, dos colegas e dos conhecidos, transforma-se em um dia-a-dia penoso e sofrido... a vida continuava para todos, menos para ele que perdeu uma parte importante de sua vida, no auge da juventude, da beleza e do sucesso, lá estava ele numa cadeira de rodas, sem falar direito, e com toda a vida na tecla "pause".  Ele, apenas ele perdeu um ano de vida.... talvez o mais importante. Vlad tinha 19 anos e estava em recuperação de um acidente grave que o deixou em coma e com sequelas para toda a vida.

Vlad levou meses pra se recuperar, muletas foram suas companheiras na recuperação, muitas cirurgias nos joelhos (que nunca foram os mesmos), braço, rosto, aprender a falar e a andar de novo, voltar a vida......ele foi retirado por um ano inteiro do ápice de sua vida. Um sofrimento que nem podemos imaginar. Ele foi sequestrado pelo destino, mantido em um quarto, em uma cadeira de rodas.....perdeu um ano, perdeu a identidade, a faculdade, perdeu namorada, amigos, tempo.....

Mas ele voltou. Um ano depois lá estava ele....seguindo....mais leonino que nunca.

Um detalhe de toda essa tragédia ficou para mim, quando ele saiu do coma, ainda na UTI, os médicos diziam que ele estava em semi-coma, uma pessoa por dia podia vê-lo na UTI, naquele dia eu entrei para ..... ele completamente desfigurado (nunca esquecerei sua imagem), olhou pra mim e disse: 

- "Lu, eu vi Buda." Eu chorei.

Como irmã penso que, depois desse acidente que quase o matou, e o retirou da vida por um ano, ele nunca mais foi o mesmo.

Mas como uma Fênix, ele voltou.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

O VLAD QUE EU CONHECI - O HERÓI E SUA SOMBRA (parte dois)


A adolescência começa a chegar para nós dois. Já temos mais duas irmãs. Nosso pai completamente envolvido com o sindicato, nossa mãe trabalhando em três turnos. Éramos uma família confusa. Não tínhamos dinheiro, vivíamos no mesmo pequeno apartamento, só que agora com mais duas irmãs, com idades tão distantes uma da outra, que adolescíamos, enquanto uma brincava e a outra era bebê. 

Tudo fica muito sombrio nessa época, nas nossas vidas. Meu pai absolutamente estressado com o sindicato, nossa mãe trabalhando em três empregos, nos virávamos não sei como. Foi então que a nossa relação fica muito, mas muito distante. Eu era aquela que tentava fazer tudo certo, que tentava não dar problemas, a chata. Vlad era individualista ao extremo. A socialização e a sexualização próprias da adolescência separou os dois irmãos. Eu o achava egocêntrico, egoísta, individualista... nos agredíamos mutuamente. Ele envolve-se com drogas, eu com yoga e meditação. Os dois buscam saídas.... fugas, sublimações....caminhos alternativos...a realidade era demais.




Eu tinha minhas amigas, ele tinha os amigos dele. Claro que ele tinha muito mais amigos, ele era popular, e carismático. Confesso que eu sentia ciúmes dele. Continuava a ser a "irmã de Vlad", e isso que antes me confortava, agora me enlouquecia. Brigávamos por tudo. Não tínhamos privacidade, não tínhamos espaços individuais, não tínhamos um bordo que nos amparasse nesse momento de conflito. Nossos pais não tinham olhos para o quão bélicos estávamos. Os conflitos foram sendo diários e desgastantes, mas vejo que não houve qualquer interferência para nos ajudar na época. Meu irmão da infância, já não existia. Sentia uma tristeza disfarçada pela raiva.


Mas desse fase das nossas vidas quero contar algumas histórias que não devem morrer comigo, e que quem o conheceu adulto, com certeza merece saber. Nesse post, contarei uma memorável.

Estudávamos no mesmo Colégio, ele um ano na minha frente. Quando ele terminou o terceiro ano, fez vestibular para Economia na Universidade Federal da Bahia, e passou. Para mim, restava ainda um ano de escola até que eu fizesse vestibular também. Bom, preciso contar que sou de Humanas, odiava com todas as minhas forças matérias como matemática e Física. Na verdade, eu não as odiava, mas adoraria que elas fossem ensinadas em português ao invés de russo. Vlad era bom em tudo, exceto em artes. Na quarta unidade do terceiro ano, eu precisava tirar 14 em física, isso significava que eu iria direto para a recuperação se não tirasse uma boa nota nessa prova. Eu não sabia nada, mas em minha defesa, preciso lembrar-lhes que o professor dava aula em russo, pelo menos para mim era assim que parecia. 

Então, vamos para a prova. Vlad, como ex-aluno do colégio, era fiscal de provas, mas não da minha sala obviamente. Eu estava na sala, com mais uns 60 outros alunos do colégio, e olhava a prova sem entender nada, costumo não perder tempo com o que não sei, não sou daquelas que acredita em milagres, e sempre tive total consciência do que sei e do que não sei, então em 10 minutos a prova já estava quase toda marcada, e eu estava prestes a passar os "chutes" para o gabarito, quando vejo Vladimir entrar na minha sala, ele pede licença para o fiscal e troca de lugar com ele, o fiscal sai, ele caminha na minha direção, eu imediatamente começo a tremer, e com a voz retumbante dele, coloca um papel na minha mesa e diz em alto e bom tom: "ISSO É PRA VOCÊ NUNCA DIZER QUE EU NÃO TE DEI NADA!!". Chama o fiscal da sala de volta, e sai.

Era o gabarito, ele havia respondido a prova pra mim. Tirei 10, mas a sala toda também tirou, porque eu passei o crime adiante, não queria testemunhas, queria cúmplices. 

Mas claro que o crime nunca é perfeito. Alguém que estudou nos denunciou. Babaca!!! Jurei de pé junto que não sabia de nada e que isso era invenção dos maledicentes, apesar do meu 10 destoar das notas do ano todo que não chegavam a 5. Toda a sala jurou que nada houvera naquele dia. Todos inocentes. Vlad perdeu o "emprego" , mas entrou definitivamente para a história do Colégio Alfred Nobel. 

No próximo post vou contar no acidente que quase o matou e o deixou em coma com traumatismo craniano, além de parar Salvador. 

continua....

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O VLAD QUE EU CONHECI (parte um)


Nascido no Rio de Janeiro em 1962, o baiano era carioca. E assim começa uma história cheia de brilho e sombra, do meu irmão. Assim começa a história de Vladimir, filho de Jacira e Jair , primos de primeiro grau, vindos de Manaus e Belém. 

Primeiro filho, mais que desejado e amado. Não foi filho único por muito tempo, porque eu, sua irmã, nasci 1 ano depois em dezembro de 63, quando nossa família já morava em Salvador. 

Nosso pai era membro de Partido Comunista Brasileiro, o extinto PCB, e fundador do maior sindicato dos petroquímicos da Bahia. Tempos difíceis para ser comunista. Em março de 64 acontece o golpe militar, nosso pai foi preso dentro de casa, deixando nossa mãe com um garoto de um pouco mais de um ano, e uma bebê de 3 mêses. Os nomes russos dos filhos  (Vladimir e Ludmila) eram uma prova contra ele, além de livros, panfletos e sua história de sindicalista. Obviamente não tenho lembranças dessa época, mas ela reverberou em toda a nossa vida. Passamos por situação de muito aperto financeiro, minha mãe teve que contar com ajuda de vizinhos, já que nem família eles tinham na Bahia.

Dessa época, apenas sei histórias que nos contaram, mas as lembranças com Vlad são bem presentes. Sempre que penso em mim enquanto criança, lá está Vlad, ao meu lado. Não tenho nenhuma lembrança de um dia sequer da minha infância em que não o sentisse como meu protetor. Ele desde muito pequeno, assumiu o cuidado para comigo. Eu era sua irmã pequena, ele cuidava de mim, e me protegia. Ao contrário dele, sempre muito confiante e extrovertido, eu fui uma criança tímida, e medrosa, tê-lo perto de mim era a única forma de me sentir confiante. 

Íamos a pé para a escola, de mãos dadas. Íamos para a praia sozinhos, de mãos dadas. Ele era meu protetor em tudo. Anos depois, após muita terapia, descubro que vivi com ele o arquétipo de "Joãozinho e Maria", éramos nós dois e a floresta escura. Eu assustada, e ele tentando não estar, porque tinha que me proteger. 

Dormíamos em beliche, ele embaixo, eu em cima. Eu tinha medo de escuro, tinha insônia desde criança, eu chorava sozinha, e ele dizia: "Lu, você está chorando? Não chore, eu estou aqui." Eu passava a noite chamando por ele, e ele dizendo "vai dormir, Lu".

Na escola, ele era o meu protetor. Nada, nem ninguém iria me fazer algum mal, por que eu era a irmã de Vlad. Todos o conheciam e admiravam. Vlad era brilhante. Aquele estudante que todos queriam ser. Ele era suspenso por mal comportamento, e constantemente aprontava alguma arte, mas suas notas eram completamente monótonas, sempre 10. Ser o cara que apronta e ainda tirar 10, era o máximo. 

Ele era popular, conhecido, famoso. Fazíamos natação no mesmo clube, e lá ele também conseguia ser alguém que se destacava. Nunca o achei competitivo, talvez por isso ele não fosse um atleta de ponta, mas era um nadador com estilo, um jogador de futebol e um surfista que sabia se divertir. 

Na Bahia era comum na época, termos a famosa "mãe preta", resquícios da escravidão. Candinha a nossa mãe preta, tinha um filho que morava conosco que se chamava Roque, e que era da idade de Vlad, e os dois juntos aprontavam horrores. Quando os vizinhos vinham reclamar de algo, Candinha batia em Roque, a gente não apanhava, mas Roque sim. Lembro de que eu e Vlad ficávamos na porta do quarto dele, implorando pra que Candinha não batesse nele, Vlad assumia toda a culpa no apronte pra livrar a cara de Roque, chorávamos juntos ouvindo Roque apanhar. 

Vlad sempre foi uma criança brilhante, diferente, forte, corajoso, meu protetor, e protetor de todos. 

Na festa da Primavera da escola, eu era a flor, ele era o jardineiro que me regava. Não conseguia ser par de ninguém nas festas de São João, acho que pela minha timidez, deixavam que ele fosse meu par sempre, apesar dele ser de uma classe acima da minha.

Não tenho uma lembrança sequer ruim dessa época das nossas vidas. Nossas brigas começaram na adolescência, que contarei depois, mas nossa infância, ele é o que existiu de melhor pra mim. Eu realmente me sentia como Mariazinha perdida na floresta e sem chance alguma de sobreviver, sem o meu Joãozinho.

Pra encerrar esse primeiro post sobre minha vida com Vlad, quero contar a mesma história que contei no seu funeral pra que vocês entendam bem como ele era. "Morávamos em um apartamento bem humilde, no andar térreo, que era voltado pra rua. Não era incomum alguém bater na nossa porta pedindo comida ou esmola. Um dia, estávamos eu e ele na cozinha, eu estava esquentando uma sopa para mim, e ele batendo uma vitamina no liquidificador, quando bateram na porta; eu atendi; era um menino de rua pedindo comida; eu disse que não tínhamos nada e fui fechando a porta aborrecida; ele vendo aquilo, me interrompeu e disse: temos sim! e deu o liquidificador inteiro para o menino, que bebeu a vitamina com tanto desespero que escorreu pelo pescoço. Eu, fiquei envergonhada da minha pequenez, Vlad acalmava o menino para que ele conseguisse beber tudo, mas sem necessidade de pressa. Nunca me senti tão mal...a grandeza dele aparecia para os desconhecidos, e eu não conseguia ser nem sombra do que ele era. 

continua....